Arquétipos: o Modelo e o Papel Social
Ao escrever um personagem deve-se ter em mente algumas características para que o leitor ou espectador o reconheça e se identifique (inclusive com os vilões). Uma maneira simples de pensar como construir esses personagens é com o uso de arquétipos, uma representação simbólica de um modelo universal, que possui um papel social — inclusive na sua história.
Em narrativas ficcionais é muito comum de se achar personagens e imagens arquetípicas. Neste post irei me basear em três estudos: os de Jung, Campbell e os de Vogler. O conhecimento deste termo e de seus estudos é muito importante ao criar uma história, já que ao reproduzir ideias universalmente reconhecíveis, os arquétipos provocam uma conexão com o leitor e empatia emocional; alcançam o inconsciente.
É necessário que se use com sabedoria e que o seu personagem arquetípico seja muito bem desenvolvido, para que não se torne um clichê. Reconhecer os arquétipos pode te ajudar a desenvolver seu personagem de maneira a levar o leitor à identificação.
O Inconsciente Coletivo e os Arquétipos para Jung
Carl Gustav Jung foi um psicanalista estudioso das teorias de Freud e da mitologia e mitos antigos de diversas culturas. Em meio a seus estudos e seu trabalho, ele se viu frente à diversas situações onde imagens vindas da repetição de uma mesma experiência diversas vezes estariam presentes no inconsciente de várias pessoas. Essas imagens foram passadas como verdades, por pessoas diferentes, em gerações diferentes.
Essas seriam ideologias presentes em diversos lugares, culturas e crenças (no Ocidente e no Oriente). A psicologia analítica, nomeou o conjunto dessas imagens primordiais — que não estão presentes apenas na sua cabeça, mas na da maioria das pessoas —, de Inconsciente Coletivo.
Por exemplo, pai e mãe. Todos temos as ideias passadas de geração em geração do que é um bom modelo de pai, que serve de exemplo e significa proteção e autoridade; assim como o simbolismo de carinho e dedicação da mãe. São modelos já presentes no inconsciente coletivo da maioria das culturas.
Esse inconsciente coletivo é composto pelos arquétipos, por essas imagens instintivas que já estão marcados em nossos sentimentos, pensamentos e intuições. Os contos, as lendas e os mitos estão presentes em todas as culturas e os mesmos tipos de personagens parecem se repetir.
Oito Arquétipos Desenvolvidos por Jung
- Animus/Anima: respectivamente, o aspecto masculino na mulher (lado racional) e o aspecto feminino no homem (lado emocional);
- Mãe: representações ligadas ao símbolo da maternidade ao longo dos séculos (carinho, cuidado, mas também poder de destruição);
- Pai: representação da figura da autoridade, servindo de exemplo de conduta;
- Pessoa/Persona: representa a nossa imagem pública e está conformada às normas da sociedade;
- Sombra: o que está oculto em nós, que vive no inconsciente e que queremos que continue oculto;
- Herói: aquele que luta pelo bem comum, vence seus objetivos e reprime a sua sombra, que é uma ameaça para a sociedade;
- Sábio: representação da sabedoria e do aprendizado, lança luz sobre o caminho do herói;
- Trapaceiro: desafia o que é pre-estabelecido pela sociedade.
Campbell, Vloger e os Personagens Arquetípicos
Enquanto Jung puxa o conceito de arquétipo para os estudos psicológicos e não foca tanto na imagem do herói, Joseph Campbell e Christopher Vogler utilizam dele na narratologia, como ponto de partida para a definição dos outros arquétipos — tornando a “jornada do herói” completa.
Campbell
Em “O Herói de Mil Faces“, Joseph Campbell apresenta o conceito da Jornada do Herói e deixa claro os arquétipos mais usados nas mitologias. Tais representações são discutidas também em outro livro do mesmo autor, “O Poder do Mito“, onde, junto com o jornalista Bill Moyers, abordam a questão do monomito (jornada do herói), e dos arquétipos de forma didática, inclusive citando exemplos e analisando Star Wars e Senhor dos Anéis.
Campbell notou que os mitos não podiam simplesmente ser inventados ou esquecidos, “são formações espontâneas da psique”.
Mitos de indivíduos que lutam heroicamente, enquanto também vencem batalhas internas, são encontrados em diversas culturas. Todos nós somos heróis, enfrentando inimigos — internos e externos. Em “O Herói de Mil Faces”, assim como em muitos outros livros de sua bibliografia, Joseph Campbell faz uma comparação entre a jornada do herói mitológica e a jornada da vida real.
Vogler
Enquanto Campbell estudou a narratologia nos mitos e fez paralelos com a psicanálise, Christopher Vogler estudou Jung, Campbell e a jornada do herói. Claro que estou simplificando, mas Vloger adentrou muito no mundo dos arquétipos, a ponto de afirmar que dominá-los é uma função vital do escritor, já que eles são parte da linguagem narrativa universal, possuem qualidades universais, sendo assim, identificáveis por todos.
Confesso que eu tenho o livro “A Jornada do Escritor“, de Christopher Vogler, como livro de cabeceira — só não está grudado em mim porque é um pouquinho grande (já está até um pouco surrado, de tanto que eu uso). Ele é uma leitura obrigatória para todo escritor. Nele, Vogler pega os conceitos de Campbell de “O Herói de Mil Faces” e os desenvolve, chegando a novos arquétipos e uma “nova” jornada do herói.
Os Arquétipos de Christopher Vogler
De forma super resumida, vou falar um pouco dos arquétipos presentes em “A Jornada do Escritor”; mas realmente indico que você faça a leitura completa para que capture toda a essência de cada um deles. No livro ele utiliza da trilogia original de Star Wars como exemplo. Não quero dar spoiler dessa análise, então vou usar de exemplo os personagens de “Harry Potter e a Pedra Filosofal” — que segue cada passo da jornada do herói.
Herói
Alguém disposto a se sacrificar pelo bem dos outros. Esse arquétipo possui diferentes funções dramáticas como identificação; aprendizado; sacrifício e o confronto com a morte. Harry Potter é o clássico arquétipo de herói: se doa pelos outros, supera desafios, tem aliados e inimigos.
Mentor
Normalmente é o personagem que ajuda ou treina o herói. Ele representa, psicologicamente, o que o herói pode se tornar, suas aspirações. Suas funções dramáticas são ensinar, dar presentes (merecidos) e motivação. Em “Harry Potter e a Pedra Filosofal” Dumbledore é o mentor (assim como em toda a saga), mesmo que de forma velada e muitas vezes trabalhando em conjunto com Hagrid.
Guardião do Limiar
Em cada portal que o herói terá de passar para cumprir sua jornada haverá um guardião para impedir. Eles não são os vilões, normalmente, mas uma dificuldade que o herói terá que pensar como ultrapassar. Suas funções psicológicas são neuroses (obstáculos internos causados por algo externo), testes, sinais de um novo poder ou conhecimento. No primeiro livro de JK Rowling, Harry tem que passar por diversos guardiões, mas acredito que o mais representativo seja o cão de três cabeças, Fofo, que ele tem que vencer para conseguir entrar no alçapão.
Arauto
Personagens que apresentam desafios e anunciam mudanças significativas. Sua função dramática é a motivação, e por isso pode-se confundir com o Mentor, mas a diferença é que o Mentor irá motivar o herói a seguir o seu caminho, enquanto o arauto vai anunciar o desafio e alertar a mudança que virá. Hagrid atua como Arauto, levando a carta e entregando-a nas mãos de Harry. “You’re a wizard, Harry”.
Camaleão
Arquétipo de instabilidade, mudam de aparência e humor. Psicologicamente eles representam o animus e anima do herói. Dramaticamente, ele traz suspense para a história. É uma máscara que pode ser usada por qualquer personagem (inclusive pelo próprio herói, dependendo da cena). Tanto Snape (parece mal, mas é bom) quanto Quirrell (parece inocente, mas é mal) usam da máscara de camaleão.
Sombra
O arquétipo da sombra é o lado obscuro, as qualidades que renunciamos. Normalmente são os vilões, antagonistas e inimigos. Qualquer personagem pode representar o arquétipo da sombra. Em “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, o lado sombrio de Harry está ligado ao fato dele pertencer intrinsecamente à Sonserina, e a representação da Sonserina é o Snape. Snape é o vilão da obra inteira, até a descoberta final.
Aliado
Parceiros para qualquer desafio, os aliados são necessários para humanizar o herói, aconselhar, lutar ao lado dele e, às vezes, contestá-lo. São muito utilizados como alívio cômico da história, e eles não precisam ser humanos. Acredito que seja um pouco óbvio, mas Hermione, Rony, Edwiges e o próprio Hagrid são os aliados de Harry em sua jornada.
Pícaro
O arquétipo do pícaro tem diversas funções psicológicas importantes, pois eles, ao provocarem risadas, demonstram a hipocrisia e a tolice de certas ações, chamando atenção para situações absurdas e provocando mudanças. Aliados podem vestir a máscara de pícaro. Em “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, Neville pega um pouco desse papel.
Arquétipo X Esteriótipo
A dúvida quanto a diferença entre arquétipo e esteriótipo é comum ao se estudar a criação de personagens.
Esteriótipo é uma imagem preconcebida de alguém ou de alguma coisa. São previsíveis e limitados. Antigamente eles já funcionaram muito bem em comédias, mas são personagens que podem cair em atitudes preconceituosas, por isso é necessário muito cuidado. Programas de TV como “Zorra Total”, “A Praça é Nossa” e “Chaves” utilizam de personagens esteriótipos.
Enquanto os esteriótipos podem se tornar rasos e previsíveis, se não construídos com muito cuidado, os arquétipos podem ter diversas personalidades, características únicas e individuais. Eles possuem uma função na história, mas cada personagem tem sua singularidade, não possuem atos e falas fixos. Por exemplo, um mentor pode ser um pouco louco, como o Doc Brown em “De Volta para o Futuro”, como pode ser sério e centrado, como o Obi-Wan Kenobi, em “Star Wars”.
Essa questão de arquétipos e esteriótipos é bem trabalhada em “Shrek”: você espera que o herói do conto de fadas seja o cara com armadura e a espada, galanteador, porque esse é o esteriótipo do herói; mas, na verdade, o herói é um ogro rabugento, porque ali temos trabalhado o arquétipo do herói (altruísmo) e não o seu esteriótipo.
Além da narratologia, o conceito dos arquétipos é aplicado também na psicologia (Jung), na filosofia (Plotino) e no cristianismo (Santo Agostinho). Hoje em dia, a ideia dos arquétipos também é muito usada na publicidade e em estratégias de marketing, pois são áreas que necessitam da identificação das pessoas para seu objetivo (a compra). Nesse caso, eles são muito usados para definir perfis de consumidores.
Como Vogler fala em “A Jornada do Escritor”, “os arquétipos podem ser pensados como máscaras, usadas pelos personagens temporariamente quando a história precisa avançar”. Conhecer as possibilidades de construção de personagens abre diversas portas criativas para suas histórias. Você já tinha ouvido falar dos arquétipos antes? Já usou deles para a criação de personagens ou de campanhas publicitárias? Conta um pouco da sua experiência nos comentários.
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Todas as imagens deste post possuem a #pracegover com audiodescrição resumida em seus textos alternativos.
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