#pracegover audiodescrição resumida: foto de um relógio despertador de ouro desmontado. No centro da foto, quadro branco com o escrito "o tempo narrativo".
ESCRITA

O Tempo na Narrativa

Ao escrever uma narrativa, deve-se ter em mente que vários elementos deverão ser definidos: enredo, narrador, espaço, personagens e tempo. A escolha e a composição correta do tempo narrativo é um dos métodos para envolver o leitor ou espectador na sua história.

O elemento tempo parece ser algo simples, mas é preciso planejamento para que seja condizente com toda a obra. Tal elemento é essencial para que o protagonista (ou protagonistas) consiga cumprir a sua jornada.

Existem dois tipos básicos de tempo narrativo — alguns estudiosos dividem em outros nomes e conceitos, mas neste post focaremos apenas em dois —, e também formas diferentes de desenvolvê-lo na escrita literária e na escrita cinematográfica. Vamos explorá-los para que você consiga narrar sua trama da melhor maneira.

Tempo Cronológico

O tempo cronológico é externo, aquele marcado pelo relógio, ou seja, o real. Uma narrativa pode se passar em dias, semanas, meses e, de algum modo, esse período estará explicito, localizando o leitor ou espectador na obra.

Toda narrativa se passa em um contexto temporal, seja ele real — 2ª Guerra Mundial; dias atuais —, ou irreal — ano 6000 d.C. No segundo caso, é necessário trabalhar a verossimilhança, para que o leitor ou espectador consiga se situar e se imaginar nesse contexto fantástico.

O tempo cronológico não precisa ser demonstrado por meio de uma data,  como uma legenda “essa história se passa em dezembro de 1975”. Se você deixar explícito que é Natal (luzes, lojas enfeitadas) e colocar algum elemento dos anos 70 (modelos de carros, uma música no rádio), é muito possível que o seu leitor ou espectador consiga se situar rapidamente nesse contexto.

Além da narrativa em si, o escritor estará presente em uma época (com certas gírias e valores), assim como o leitor. Por isso, sempre tenha em mente que o modo como você recebe a obra agora não vai ser o mesmo modo que será interpretada pelos seus leitores ou espectadores, e tudo bem. Quando você lê hoje, no Século XXI, uma obra de Machado de Assis — escrita no Século XIX —,  você estará interpretando de uma forma totalmente diferente dos primeiros leitores.

Isso nos leva a pensar que o tempo narrativo é extremamente imagético e cercado de ideologias. Caso você tenha escolhido os anos 1800 para a história, nenhum nobre tratará o outro por “você”. O tempo histórico demanda pesquisa e estratégia.

Agora, se o seu objetivo é que o leitor ou espectador se perca no tempo, que ele não saiba quantos dias ou meses se passaram, o tempo cronológico será um pouco camuflado e o psicológico será evidenciado.

Tempo Psicológico

Ao contrário do cronológico, que também pode ser chamado de tempo coletivo (já que todos estão vivendo juntos), o tempo psicológico é particular. É interno. O que predomina não é a ação da personagem, mas seus pensamentos e sentimentos.

Cada pessoa sente a passagem do tempo de uma forma. Por exemplo, quando você está fazendo uma tarefa que gosta muito, parece que os minutos voam, não é? Agora, se começar a fazer algo que não está muito animado, cinco minutos vão parecer horas.

O tempo psicológico poderá estar presente como um fluxo de consciência, um flashback, um déjà vu ou um sonho.

Podendo ser demonstrado de diversas formas na narrativa, é interessante que o modo como você o representará vai impactar diretamente nas sensações do espectador ou do leitor, porque ele irá sentir o que o personagem sentiu. Ou seja, vai impactar no ritmo narrativo.

Por ser um elemento altamente maleável, pode acelerar a história (quando utiliza diversas ações em sequência); pausar a história (quando muda repentinamente de contexto, como num flashback), e alongar a história (quando utiliza de longos diálogos ou longas descrições).

O tempo em uma narrativa pode ser como uma música clássica, que possui diversos momentos que se fundem, alguns mais rápidos e acelerados, bem marcados, enquanto outros mais lentos e suaves.

Escrita Literária

Em um conto ou crônica, o tempo costuma ser mais curto do que em um romance — mas isso não é uma regra. Normalmente, em algumas horas ou dias (narrativos) o conflito de um conto ou crônica se conclui; já em um romance, esse conflito pode durar anos e até mesmo a duração leitura será maior.

Essa não é uma regra, assim como o tempo do narrador não é necessariamente o mesmo da história. Ou seja, o narrador pode estar no presente contando uma história de anos atrás, que é o que encontra-se na grande maioria das obras literárias — os verbos no passado —, afinal, todas as narrativas são uma contação de histórias que muitas vezes já aconteceram.

Existem também histórias escritas no presente, que acontecem no mesmo momento da fala,  mas é muito mais comum achar esse tempo verbal na escrita de dramaturgia.

Na escrita literária, explorar os detalhes imagéticos por meio de descrições tornam a exibição do tempo cronológico muito mais natural e harmoniosa.

O ritmo será guiado principalmente pelos diálogos e longas descrições e narrações. Quando muito detalhado ou com muita digressão, um parágrafo pode parecer um capítulo, mas não de uma forma ruim, mas no sentido de que o ritmo desacelera. Neste momento é possível explorar o tempo psicológico da personagem.

Em “O Guia do Mochileiro das Galáxias“, de Douglas Adams, no momento que as naves chegam à Terra, o tempo passa devagar para quem observa aquela cena, quase paralisado. Para isso, algumas descrições foram usadas, veja:

“As grandes espaçonaves pairavam imóveis no céu, sobre todas as nações da Terra. Pairavam imóveis, imensas, pesadas, completamente paradas no céu, uma blasfêmia contra a natureza. Muitas pessoas entraram em estado de choque quando suas mentes tentaram entender o que estavam vendo. As naves pairavam imóveis no céu da mesma forma como os tijolos não o fazem.”

Roteiro Cinematográfico

No roteiro cinematográfico é imprescindível que o tempo verbal seja o presente. Por ser um texto a ser encenado, as ações narradas ali serão imediatas. O mesmo acontece com o roteiro dramático, de teatro.

Tecnicamente, no roteiro há um lugar específico para indicação do tempo: a cabeça de cena. Nela serão encontradas informações muito importantes para a produção do filme. Pretendo escrever um post mais detalhado sobre os elementos técnicos na escrita do roteiro cinematográfico.

The Umbrella Academy

Em “The Umbrella Academy”, série da Netflix adaptada dos quadrinhos, o personagem Número 5 tem a capacidade de viajar no tempo. Com isso, a estrutura geral da narrativa tem que ser muito bem estruturada. Quem nunca viu uma obra com viagem no tempo cheia de buracos e inconsistências?

Se você estiver fazendo uma obra com viagem temporal revise-a quantas vezes for necessário para que não deixe nenhuma ponta solta!

Vamos analisar o início do roteiro do episódio piloto de “The Umbrella Academy”, escrito por Jeremy Slater.

Na cena teaser (antes da abertura), já vemos um flashback. É importante tomar cuidado caso você abra o seu roteiro com um flashback, porque estará explicito na folha de papel, mas na tela não, então o espectador não terá certeza se é o passado ou se é o tempo em que se passará o restante da obra.

#PraCegoVer Audiodescrição resumida: trecho do roteiro de "The Umbrella Academy"

Portanto, assim que o flashback acabar, é importante deixar claro o tempo cronológico em que a obra se passará em sua maior parte. Na série, a opção escolhida foi colocar uma tela indicando “30 anos depois”. Poderiam ter colocado “2019” ou “dias atuais”, ou até mesmo mostrado um cartaz com a data do evento em que Vanya está. O importante é situar o espectador para dar prosseguimento à história.

#PraCegoVer Audiodescrição resumida: trecho do roteiro de "The Umbrella Academy"

Nesse caso, estamos falando literalmente da escrita do roteiro. Porém, na obra audiovisual como um todo existem diversas formas que o diretor, em conjunto com os outros membros da equipe, pode demonstrar o tempo, seja ele cronológico, seja ele psicológico. Por exemplo, a montagem, que dita o ritmo do filme e a direção de arte.

Café com Canela

Em “Café com Canela“, filme brasileiro dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa, escrito por Ary Rosa, temos uma linda cena onde a personagem principal, Margarida — que vive a depressão pelo luto —, está em sua casa e a casa se torna uma selva, é algo vivo, como se a engolisse. A cena dura 3 minutos, mas metaforicamente são dias de sofrimento. Não consegui achar o roteiro original online, porém, a escrita dessa cena seria tecnicamente simples, como:

#pracegover audiodescrição resumida: trecho de roteiro.

Imageticamente e sonoramente a cena é muito forte, trabalho realizado pela equipe para que esse momento interior da personagem conseguisse ser externizado propriamente. O roteirista fica, de certa forma, dependente da interpretação e significação do diretor para que o tempo psicológico fique salientado nas cenas.

Na escrita literária, a cena poderia ser transcrita de forma muito detalhada, para que a angústia da personagem fosse passada de forma a desacelerar o ritmo da narrativa e transformar o andamento.

 

Que tal você fazer esse exercício de escrever essa cena de forma literária? Poste aqui nos comentários qual foi o resultado. E se você tiver outros exemplos de demonstração do tempo, seja nos livros, seja no audiovisual, posta aqui também.

 

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Todas as imagens deste post possuem #pracegover com audiodescrição resumida.

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