#PraCegoVer Audiodescrição Resumida: Foto de vários livros abertos amontoados. No centro da foto, um quadrado branco. Dentro do quadrado branco, o escrito "narrador: uma escolha para seu projeto".
ESCRITA

Narrador: Como Escolher o Certo para o seu Projeto

Uma narrativa depende de diversos elementos: tempo, espaço, personagens, enredo, conflito e narrador — não necessariamente nessa ordem. Portanto, quando começamos a escrever ficção, temos que fazer milhares de escolhas para a história e uma delas é, justamente, o aspecto do narrador e o foco narrativo.

Antes de qualquer coisa, é preciso frisar que este post está relacionado apenas à escrita narrativa ficcional ou não ficcional, já que um texto argumentativo é considerado um texto não narrativo. Nesse tipo de texto podemos encontrar a narratividade (como num livro ou texto científico, por exemplo), pois haverá a escolha de como demonstrar o tema, porém a narração em si – contar uma história para envolver um leitor ou espectador – não será encontrada.

Eu aconselho que escolha primeiro o aspecto que o narrador apresentará para depois escolher o foco narrativo, mas isso não é uma regra. Na verdade, não existem regras. Pode ser que você escreva metade do seu livro em um foco narrativo e perceba que aquele não é o melhor pro projeto e tenha que trocar. Acontece. No entanto, é importante termos um ponto de partida, assim podemos dar mais credibilidade e detalhes dependendo da nossa escolha.

#PraCegoVer Audiodescrição Resumida: Foto de uma linha de trem. Uma pessoa segura uma máscara de teatro preta. Credibilidade do Narrador.

Aspecto do Narrador

O modo de apresentação do narrador terá grande influência no acompanhamento da história, já que ele determinará até que ponto o leitor ou espectador irá acreditar nela. O que estará em jogo aqui é o convencimento do que é contado. Vou apresentar três possibilidades de aspectos do narrador — seja qual for o foco narrativo escolhido.

1 – Narrador com Credibilidade

Acreditar em tudo que é narrado, sem ficar com nenhuma dúvida. Se é isso que você quer que o seu leitor sinta, então esse é o narrador que você está procurando.

Normalmente se imagina que a narração em 3ª pessoa é aquela que terá mais credibilidade, mas, novamente, isso não é uma regra. Um personagem poderá muito bem passar credibilidade para o leitor, afinal, ele contará sua visão dos acontecimentos e é nela que o leitor irá acreditar. Caso ele não participe efetivamente da história, não seja um protagonista, fique mais fácil, mas protagonistas também podem passar confiança.

Se todos elementos estiverem em perfeita coesão e a verossimilhança tiver sido alcançada, todo tipo de narrador pode passar confiança ao leitor.

Exemplos

Em “Fahrenheit 451“, de Ray Bradbury, não desconfiamos do relato narrado nenhuma vez. O narrador, inclusive, está sempre colocando a importância da literatura em pauta.

Assim como em “Jogos Vorazes“, de Suzanne Collins, onde a narrativa é contada pela voz de Katniss, a protagonista e, mesmo assim, confiamos nela. Essa confiança em suas palavras vem, muito provavelmente, da empatia que o leitor sente pela personagem e pelo que ela narra, além da torcida por seu ato de heroísmo.

2 – Narrador sem Credibilidade

Nesse caso, vai no sentido totalmente contrário do aspecto anterior. Aqui, você pretende que o seu leitor sempre duvide do que está sendo narrado, sempre tente buscar a verdade ou a mentira na fala do narrador. É preciso muito cuidado e atenção na escolha desse tipo de perspectiva, pois ela deve ser uma escolha e não um acidente.

Talvez você tenha escolhido utilizar do narrador com credibilidade e, por um tropeço na verossimilhança ou no modo de escrita, ele perde a credibilidade; porém ele estará sem a profundidade que o narrador sem credibilidade deve apresentar.

Esse tipo de narração deve ser uma construção complexa, pois ele será, de certa forma, ardiloso. Um impostor. Mas alguém só se torna impostor quando, por certos momentos, acredita-se nele , até que ele se revela um “mentiroso” e, então, começamos a duvidar. Ele tenta a todo momento convencer o leitor, que terá essa margem de desconfiança.

É muito mais simples criar um narrador sem credibilidade quando ele é personagem, já que o personagem conta a história do seu ponto de vista (e todos sabemos que uma história tem mais de um ponto de vista).

Mas é possível que o seu narrador sem credibilidade seja observador, e ainda, seja onisciente. É mais complicado, pois ele terá que enganar o leitor, tendo muita credibilidade no início, para depois acontecer um fato que mostrará como a trama era, de certo modo, falsa.

É preciso muito planejamento para escrever esse tipo de narrador, porém não é impossível.

Exemplos

Um exemplo de narrador sem credibilidade em 1ª pessoa é o personagem principal do filme “Forrest Gump”, de 1994, dirigido por Robert Zemeckis, roteirizado por Eric Roth. Não sabemos se podemos acreditar em tudo que ele conta, em todas as suas palavras. Sempre ficamos com dúvida e na espera de uma prova – até porque, ele narra fatos históricos muito conhecidos em que estava presente, e a confirmação sempre vem por meio de vídeos ou fotografias. Ele é um narrador não confiável por ser inocente demais, a ponto de poder criar histórias imaginárias.

Reparação” de Ian McEwan é um livro narrado quase em sua integridade em 3ª pessoa, porém no final — desculpe caso eu te contar um spoiler — descobrimos que ele estava sendo narrado por Briony. Ou seja, pode ser que nós, como leitores, tenhamos sido enganados durante toda a leitura. Você deixa de confiar inteiramente no que leu e começa a repensar em toda obra.

3 – Narrador com Documentos

Esse é o “narrador advogado“, que se apoia em provas físicas para seguir com sua história. Ele conta a história baseado em cartas; em documentos oficiais. Normalmente ele passa credibilidade justamente pela presença desses documentos que funcionam como “provas” para o leitor ou espectador.

Exemplo

Um clássico que possui uma narradora com documentos é “O Diário de Anne Frank“. O documento é o próprio diário de uma garota de origem judaica, que sabemos que realmente existiu e que viveu durante a 2ª guerra. Ela narra o que realmente aconteceu naqueles momentos. Ela possui total credibilidade.

Então, é muito importante, na hora da revisão, verificar se a sua escolha narrativa está sendo completamente cumprida; se o seu narrador passa a credibilidade que você deseja e que você planejou. Quando você mostrar a obra para aqueles primeiros leitores de sua confiança, pergunte “você confiou totalmente no narrador ou duvidou dele em alguns momentos?” e veja se a reposta é a que você estava procurando.

 

#PracegoVer audiodescrição resumida: foto em preto e branco. Do lado esquedo, um boneco do pato donald olha para cima, de onde vem a luz de um abajur, posicionado ao lado direito. Foco Narrativo.

Focos Narrativos

1 – 1ª Pessoa – Personagem

Quando o narrador também é um personagem – protagonista ou coadjuvante – os traços subjetivos tendem a aparecer naquela obra, já que há o envolvimento emocional do personagem quanto aos fatos. O desafio é criar a voz do personagem: como ele fala? Como ele pensa? Ele se expressa de forma objetiva ou é enrolado? Tem vícios de linguagem?

Se ele é protagonista, ele terá uma relação íntima com todos os outros elementos da narrativa e poderá fazer revelações profundas sobre a história e qualquer outro narrador não poderia.

Se ele é coadjuvante, ou testemunha, ele também possui uma relação inerente ao enredo e aos outros personagens (inclusive o protagonista), porém ele não poderá, por exemplo, apresentar os sentimentos do protogonista.

Exemplos

Um exemplo de obra com protagonista personagem é “O Apanhador no Campo de Centeio” de J. D. Slinger. Holden Caulfield é um protagonista que acaba sendo também um narrador não muito confiável, já que fala por diversas vezes durante o livro que é mentiroso .

No filme “Pinóquio” (animação de 1940, da Disney), o Grilo Falante é um narrador testemunha, ele é personagem, porém não é protagonista.

2 – 2ª Pessoa – Narrador que Reconhece o Leitor

Esse é o narrador que quebra a famosa quarta parede, que sabe da existência de um leitor ou espectador e conversa com ele. É muito usado caso você queira criar a ilusão de que o leitor também é um personagem da história. É um tipo de narração que cria estranhamento, principalmente na escrita literária; por isso há autores que escrevem apenas passagens em segunda pessoa e logo retornam para o foco narrativo principal. Há alguns mais corajosos e ousados que embarcam com o narrador em 2ª pessoa durante toda a obra.

Já no cinema ou no teatro, a quebra da quarta parede não tem mais tanto estranhamento, pois é uma técnica que foi usada e vista mais vezes, porém ela é feita propositalmente e com um objetivo bem demarcado, não por acidente.

Exemplos

Na literatura, o encontramos em “Aura” de Carlos Fuentes, que acredito que seja um dos exemplos mais famosos dessa voz narrativa;

No cinema, temos a clássica quebra da quarta parede em “Curtindo a Vida Adoidado”, filme de 1986, escrito e dirigido por John Hughes, onde Ferris Bueller conversa abertamente com o espectador, de modo que quem assiste o filme participa das suas loucuras, assim como os personagens que o acompanham.

3 – 3ª Pessoa – Observador ou Onisciente

Um narrador que não participa ativamente do enredo, tornando uma narração muitas vezes imparcial e objetiva, já que ele se limita a apenas repassar o que observa e o que sabe.

Nesse tipo de foco narrativo há escolhas a serem feitas. A primeira: ele é apenas observador, ou seja, sabe apenas o que vê, é limitado, ou ele é onisciente — o chamado narrador Deus — que sabe de tudo, dos sentimentos e pensamentos íntimos dos personagens e até mesmo de suas ações futuras?

A segunda: ele será neutro ou seletivo, ou seja, ele vai expor a visão de um todo da história ou focará em um personagem específico?

Exemplos

Um exemplo para narrador observador é “Capitães da Areia“, de Jorge Amado. O narrador apenas transmite, é indiferente quanto à narrativa.

Em “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley há um exemplo para narrador onisciente. Ele conhece todos os passos dos personagens, inclusive o seus sentimentos e pensamentos.

 

Lembre-se que é possível fazer a alternância entre os focos narrativos, dando mais de um ponto de vista para o leitor. Mas também é necessária muita atenção e planejamento nessa escolha: o que cada narrador vai contar? Eles falarão dos mesmos acontecimentos de forma diferente ou cada um vai falar sobre um momento? (por exemplo, “Noite na Taverna“, de Álvares de Azevedo).

Agora chegou a sua vez, escolha o foco narrativo e como esse narrador irá se apresentar para o leitor ou espectador da sua obra.

Um exercício que eu indico é escolher uma história curta — pode ser até já escrita, a Associação Nova Escola fez um compilado de contos que você pode utilizar — e, primeiro, analise qual o tipo de narrador usado originalmente, depois, reescreva a história de duas perspectivas diferentes, excluindo elementos que devem ser excluídos (como sentimentos, caso o narrador passe a ser observador) ou acrescente detalhes que não estavam lá (como uma história pregressa do personagem, que apenas um narrador testemunha saberia). Também tente mudar a credibilidade daquele narrador.

Tem uma história para contar sobre a escolha do narrador da sua obra? Um exemplo legal que eu não citei acima? Deixe aqui nos comentários. Caso você esteja vindo de um link de rede social, comente por lá também.

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Todas as imagens desse post possuem #pracegover e audiodescrição resumida em seus textos alternativos.

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