
Autoficção: um gênero híbrido na literatura
A autoficção é um conceito que vem ganhando notoriedade no mundo editorial nos últimos anos, principalmente depois de 2022, quando Annie Ernaux ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, foi então que o conceito explodiu. Mas você sabe o que é autoficção?
Eu, Natália Marques, vou lançar, no mês de junho, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, meu novo livro, que é uma autoficção com realismo mágico, intitulado “Sete Centímetros”. Durante as diversas revisões, reescritas e agora, no processo de marketing para a publicação, o conceito de autoficção cruzou com a minha jornada.
Criação do termo autoficção
Em 1977, Serge Doubrovsky cunhou esse termo para falar sobre o livro que estava publicando, chamado “Flis”. Ele usou “autoficção”, porque o protagonista de sua narrativa tinha mesmo nome, profissão e morava na mesma cidade do autor, mas, de acordo com ele mesmo, a história estava refeita pela escrita.
A partir daí, já vemos uma das principais características dos livros de autoficção: quando o autor , narrador e personagem coicidem, podendo gerar até uma certa confusão: será que o narrador e o personagem são a mesma pessoa? O autor é o protagonista? Ou, no caso de “Sete Centímetros”, a dúvida que o leitor fica durante o livro inteiro é: será que o autor é o narrador?
Ainda pegando o final da fala de Doubrovsky como base, em que ele diz que a história estava refeita pela escrita, podemos dizer que, na autoficção, a conexão entre a realidade e a ficção acontece por uma forma mediada e sensível. O autor viveu aqueles fatos, mas o que o leitor encontrará é uma versão dos fatos, não os fatos em si. Até porque, quando estamos falando de fatos 100% reais e passados de forma razoavelmente imparcial, caminhamos para a escrita jornalística ou biográfica.
Mas não seria a autoficção uma biografia?
Não, apesar de os dois se confundirem muito, já que a autoficção é um gênero híbrido, que mistura a autobiografia ou o romance autobiográfico com elementos de ficção, ou seja, inventados, que não aconteceram na vida real.
Quando se escreve uma autobiografia, o elemento mais importante é a história da pessoa, e como ela mantém o pacto de realidade que fez com o leitor. Porque, como autores, a partir da primeira palavra de um livro nós fazemos certos pactos com o leitor e um deles é se o pacto é romanesco, ou seja, se não é fiel à realidade ou se é biográfico, fiel à realidade. Na autoficção, o elemento mais importante é o próprio texto, a narrativa, não a história em si. Então, não há um pacto com o leitor dizendo “tudo que está escrito aqui é verdade, pode acreditar”. O pacto aqui é misto: metade romanesco e metade biográfico, causando aquele sentimento de “o que será que realmente aconteceu disso tudo que eu li?”.
Doubrovsky diz que “a autoficção é o meio de tentar retomar, recriar, remodelar em um texto, numa escrita, experiências vividas — de sua própria vida —, que não são, de modo algum, uma reprodução, uma fotografia”. Então, ao ler uma autoficção, a dúvida “até que ponto aquilo foi vivido pelo autor?” é constante, porque não há compromisso com a verdade, com a fidelidade, apesar de ela estar ali em algum ponto.
Como autores, nós temos que pensar: é mais interessante para a narrativa mudar certo dado, certo acontecimento em prol do romance — e aqui estou falando de romance como gênero literário e não de romance romântico — ou é mais interessante se manter fiel à realidade?
Muita gente não gosta de autoficção. Muitos críticos dizem que a autoficção surge com autores que só querem olhar para o próprio umbigo. Óbvio que eu não concordo com isso, já que eu estou publicando um livro do gênero, mas eu acho que o crescimento da quantidade de livros de autoficção é, sim, um reflexo do nosso tempo. Selfies, fotos de perfil, carrossel de fotos do mês, percebe que a espetacularização do eu está constante no nosso dia a dia? Uma selfie lotada de efeitos nada mais é que uma autoficção imagética.
Foucault e a Escrita de Si
Levando para a literatura, Michel Foucault traz o conceito de “escrita de si” e fala sobre ela como busca de sua subjetividade.
A escrita de si é trazer o eu para literatura. E, como estudiosa e escritora, vou ainda mais longe, acredito que é um modo de fazer uma metonímia da sociedade, pegando um indivíduo específico — no caso da autoficção, o autor ou alguém de convívio direto do autor — representando a sociedade. Quando a gente fala de si, a gente também fala do outro, e essa é a grande mágica de um livro bem escrito: quando lemos e conseguimos nos identificar mesmo que aquela não seja exatamente a nossa história.
Portanto, antes de dar algumas indicações de autoficções que eu separei para vocês, quero finalizar com uma definição em uma linha do conceito, que você pode usar rapidamente em uma conversa e, se alguém quiser saber mais profundamente sobre o assunto, você manda o link deste artigo para a pessoa, certo?
A autoficção é a ficcionalização da própria história de forma declarada, criando uma narrativa, de certo modo, ambígua, deixando o leitor com aquela pulga atrás da orelha.
Se você quer entrar no mundo da leitura de autoficção, aqui vão três sugestões de títulos para você: “E se eu fosse pura“, da Amara Moira; “Quarto de Despejo“, de Carolina Maria de Jesus — não é abertamente uma autoficção, mas há muitos estudos em cima disso e eu, particularmente, considero —, e “Noites Azuis“, de Joan Didion. E, a partir de junho, “Sete Centímetros”, de Natália Marques, será leitura obrigatória para conhecer mais da autoficção.
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