
Tecnicamente inspirador, emocionalmente impressionante | Uma resenha de “Véspera”, de Carla Madeira
Ao ler a sinopse de “Véspera“, de Carla Madeira, a ideia que criei em minha mente de como seria o livro foi completamente diferente da experiência que a autora coloca nas páginas. Escolhi-o para ser o livro do mês de maio do Clube do Livro Café com Nat, para tratar da maternidade e das suas várias camadas. De acordo com a sinopse, a obra conta o drama de uma mãe que abandona o filho em uma rua de mão única e, minutos depois, quando se arrepende e volta para buscá-lo, ele não está mais lá.
Foi-me entregue outra coisa. Muito mais.
A técnica de marketing de anunciar uma sinopse um pouco diferente do que há no interior do livro é uma artimanha perigosa, caso o livro não atenda as altas expectativas, normalmente criadas pela sinopse. Não foi o caso de “Véspera”, cujo enredo principal (que não é a da mãe que abandona o filho) é extremamente superior. Em Gênesis 4 conhecemos a história de Caim e Abel. Em “Véspera”, também.
Carla Madeira divide o livro em duas linhas temporais, uma narrativa não-linear, contando a história do abandono de Augusto, filho de Abel e Vedina, no presente e, no passado, a história de Abel e Caim. Abel poderia ser o protagonista desta história, afinal, é o conector das duas linhas temporais, mas a verdadeira protagonista é criação materna. Esse é o tema que permeia as 250 páginas de “Véspera”.
O narrador onisciente, mas não intruso, faz um trabalho de aproximação do leitor com a história, mas sem que ele se sinta realmente parte dela, como se, naquele mundo, não fosse mais permitido entrar ninguém. Isso faz um paralelo com uma das citações que destaquei: “há nas famílias uma demarcação de território onde as fronteiras dizem: daqui para dentro somos nós”. A família que conhecemos no livro é um círculo fechado, impossível de transpassar.
A autora disseca o determinismo freudiano, que diz que o homem é fruto do meio, colocando gêmeos idênticos se transformando em adultos completamente diferentes. Além disso, compara, indiretamente, a criação de Abel e a criação (e abandono) de Augusto, colocando o papel da mãe como fato determinante no futuro de uma pessoa.
Nós, leitores, somos tirados daquele círculo social e só podemos viver essa experiência como meros espectadores. Mesmo assim, passamos a apreciar observar aquela família, saber o que acontece na vida deles, especialmente de Caim, a quem deveríamos recear, devido ao nome.
De acordo com John Locke, o homem nasce como uma folha em branco. A folha de Caim passou a ser preenchida com canetas coloridas, enquanto Abel teve sua folha amassada, suja, cheia de carrancos. Ela nunca voltaria a ser o que foi um dia.
O que, no início, se apresentou como uma leitura com a qual não parecia que eu iria me conectar — demorei mais de 20 dias para ler um livro com 250 páginas, e, pelo meu ritmo habitual de leitura, isso foi um longo tempo —, se tornou um tiro, um soco no estômago, uma reviravolta emocionante. Terminei “Véspera“, de Carla Madeira, me perguntando se, um dia, construirei uma teia de palavras tão bonita quanto a dela. Um livro ao mesmo tempo incômodo e inspirador.

