Patrimônio audiovisual brasileiro: por que tão marginalizado?
Este é uma adaptação do roteiro de uma live que ia fazer no Instagram. Dia 27 de outubro foi o Dia do Patrimônio Audiovisual, e algo que se tornou muito importante para mim de uns tempos para cá foi justamente lutar e militar pela conservação do Patrimônio Audiovisual Brasileiro.
Qual foi o último produto audiovisual brasileiro que você assistiu? Estou assistindo “Manhãs de Setembro”, a série com a Liniker, disponível na Amazon Prime Video e sei que, em seguida, vou maratonar “Sintonia”, série da Netflix.
Mas sei que muitas pessoas que se deparam com essa pergunta ficam sem saber o que responder, sem se lembrar. Talvez respondam o nome de uma novela – o que é super válido, as novela também faz parte do nosso patrimônio, um grande patrimônio, inclusive. As novelas brasileiras são referência para o mundo inteiro. Um exemplo é “Avenida Brasil”, escrita por João Emanuel Carneiro, Antonio Prata, Marcia Prates, Luciana Pessanha e Alessandro Marson, que foi transmitida pra 147 países. Mas o patrimônio audiovisual brasileiro não é valorizado, principalmente pelo brasileiro.
Por que existe um Dia do Patrimônio Audiovisual?
Nós somos nossa história. Quem acha que não é importante conhecer o passado para entender o presente e pensar no futuro não entendeu como a vida funciona. Celebrar o Dia do Patrimônio Audiovisual é celebrar memórias e identidades em forma de arte, vídeo e som.
Infelizmente, o Patrimônio Audiovisual Brasileiro está sendo severamente deteriorado. Acredito que esteja vivo na memória de todos o incêndio no acervo da Cinemateca, em São Paulo, no dia 29 de julho de 2021. Bom, essa foi uma tragédia anunciada, e mais do que isso, repetida. Expliquei um pouco sobre esse incêndio em específico nesse vídeo do Instagram.
Ao longo dos anos, foram 5 incêndios nos prédios da Cinemateca Brasileira, desde a sua criação, em 1946.
Quando você tem um filme ruim, às vezes produzem uma sequência, como tentativa de superar o primeiro filme. Acontece que a sequência também é ruim. Conclusão? Deve-se parar por aí, certo? Não, aqui no Brasil resolveram fazer cinco filmes ruins, ou melhor, resolveram queimar filmes que faziam parte do nosso patrimônio cinco vezes. As causas? Sempre a negligência.
Os Incêndios na Cinemateca Brasileira
A Cinemateca Brasileira é um órgão do governo federal e não há como analisar e falar sobre os incêndios sem conectá-los ao governo de cada época.
Em 1957, governo JK, na Cinemateca Brasileira anexa ao Museu de Arte Moderna em São Paulo, houve um incêndio que queimou muitas películas do nosso cinema. Por conta da popularidade internacional do JK, muitos países ajudaram a reconstruir o local da instituição, doando dinheiro. Mas o que foi perdido, foi perdido.
Em 1969, em meio ao AI-5, a época mais violenta da ditadura militar no Brasil, um novo incêndio, dessa vez no galpão no Parque do Ibirapuera. “Não restou nada das 200 latas de película, entre as quais algumas obras-primas do cinema, como o ‘Canto do Mar’, de Cavalcanti.”, diz uma notícia da época. Todos sabemos como a ditadura militar tratou a criação artística. Foram 21 anos de censura – algumas épocas mais brandas que outras – e de exílio para muitos artistas. O patrimônio audiovisual brasileiro também sofreu muito nessa época.
Em 1982, durante o governo Figueiredo, último presidente antes do fim da ditadura, mais um incêndio no Ibirapuera. 1500 filmes foram perdidos.
Em 2016, em meio as confusões e injustiças que levaram ao impeachment da presidente Dilma Roussef, mais um incêndio, aproximadamente 700 títulos foram perdidos. No mesmo ano, iniciou o desmonte do Ministério da Cultura: extinto durante o governo Temer, se tornando parte do Ministério da Educação, mas que logo voltou à ativa. Depois, em 2018, nos primeiros meses de mandato de Jair Bolsonaro, foi extinto novamente e criou-se a Secretaria Especial da Cultura, atrelada ao Ministério do Turismo. Continuamos assim até hoje, com o secretário Mário Frias – atualmente, a qualquer momento esse nome pode mudar, porque é isso que acontece com o governo Bolsonaro.
E então, em 2021, mais um incêndio, esse que aconteceu em julho, com uma Cinemateca largada às traças e diversos funcionários avisando o grande perigo de um incêndio acontecer.
Por que as pessoas não valorizam o patrimônio audiovisual brasileiro?
A grama do vizinho é sempre mais verde. Acho que essa é a resposta mais plausível e que faz mais sentido. Produções norte-americanas e europeias são a menina dos olhos do brasileiro, enquanto isso, as produções brasileiras lutam por incentivo, patrocínio e audiência.
Confesso que também sou culpada. Mesmo antes da pandemia, raramente comprava ingresso no cinema para assistir a um filme nacional, enquanto para Avengers, comprava na pré-venda, um mês antes. Mas todo esse tempo com os streamings me fez consumir muitos produtos brasileiros de qualidade, muitos que, comparados com os produtos internacionais, são até melhores.
Uma coisa que o nosso audiovisual pode dispor que nada mais pode é o sentimento de lar. Eu amo ver as ruas de São Paulo na minha TV, adoro que muitas pessoas, no mundo inteiro, estão assistindo a Avenida Paulista, o Minhocão e a Ponte Estaiada, lugares tão cotidianos para mim e que me fazem sentir em casa.
Me conforta saber que eu posso estar em qualquer lugar do mundo e posso ligar em um streaming e ouvir alguém falando “meu” ou “vamo pro rolê” ou “não posso, tenho que trampar” – como nas séries “Manhãs de Setembro”, “Sintonia”, ou no filme “Depois a Louca Sou Eu” – todos se passam em São Paulo, minha cidade natal.
Por isso, eu termino esse texto fazendo um apelo: já que o governo não valoriza o patrimônio audiovisual brasileiro, a ponto de queimá-lo cinco vezes, nós temos que valorizá-lo. Assista aos filmes, às séries, às novelas, aos clipes, aos documentários, programas de TV, vídeos na internet, tudo é memória, tudo é identidade, tudo é patrimônio.