Análise do Filme “Jogos Vorazes” (2012)
Uma adaptação audiovisual de uma obra literária sempre possui a linha tênue entre a imagem e o som e a literatura. Uma boa adaptação cinematográfica não só traduz as palavras em imagem e som, como também faz uma interpretação do texto e uma homenagem ao trabalho do autor. Esse é o mistério das adaptações: qual parte tirar, qual parte deixar, o que modernizar e onde ser fiel; é criar uma nova história sem esquecer a que você está se baseando. E é isso que faz Gary Ross no roteiro de “Jogos Vorazes” (2012), em parceria com Suzanne Collins, a autora da trilogia, que fez questão de supervisionar a realização do filme, para que a essência não se perdesse.
O cerne dos Jogos Vorazes
A história se passa num futuro distópico, onde a desigualdade social e econômica é gritante, além de ser um regime totalitário – há um presidente, mas nunca houve uma eleição. Somando a essas características, conhecidas da atualidade, para lembrar a população de que não se deve fazer levantes e manifestações contra a Capital, o governo criou os Jogos Vorazes, onde cada um dos 12 distritos deve enviar um casal de jovens para lutar até a morte. O “jogo” é televisionado para toda a nação, inclusive nos distritos mais pobres, que enviaram suas crianças. E é do distrito mais pobre da nação que vem a protagonista Katniss Everdeen, interpretada pela vencedora do Oscar, Jennifer Lawrence.
O filme começa com a explicação da história dessa nação, seguido por um programa de entrevistas, como um prólogo – quem está vendo o filme precisa entender bem a história pregressa. O apresentador, Caesar (Stanley Tucci), tem cabelo azul e o entrevistado, Seneca (Wes Bentley), tem a barba desenhada, o cenário é bem construído e suas roupas são luxuosas. Depois da explicação, com um grito, somos levados a um cenário totalmente diferente, sem nenhum traço de luxo, o Distrito 12. Gary Ross escolhe não começar o filme com a protagonista (ato corajoso), ele nos apresenta a causa que merece ser combatida: a desigualdade.
As escolhas estilísticas do diretor
Ross já tinha experiência em transformar questões político-sociais em filmes de sucesso – sua estreia como diretor em “Pleasantville” (1998) e depois em “Seabiscuit” (2003) – ambos indicados ao Oscar – provam tal teoria. Em entrevista, perguntaram ao diretor por que não usou mais efeitos especiais em “Jogos Vorazes” ou até mesmo o 3D – que estava em alta com o lançamento de “Avatar” (James Cameron), no mesmo ano. Gary respondeu que esse ato seria justamente fazer o que o livro condena: entretenimento que se torna espetáculo e o espetáculo se transforma em controle político.
Apresentando o cenário de pobreza, apresenta também a protagonista Katniss e seu entorno: sua família, uma irmã mais nova e uma mãe distante, que tem depressão desde a morte do marido. Também apresenta o passatempo de Katniss: caçar e, com ela, consegue alimentar sua família. Com seu melhor amigo, Gale (Liam Hemsworth), que faz o mesmo, discussões sobre a situação de miséria em que vivem são constantes. Gale tem a vontade da revolução, mas nenhum dos dois tem esperança, principalmente porque o nome deles estão em dezenas dos papéis que irão para o sorteio dos Jogos Vorazes.
Na sequência do sorteiro, Gary Ross se utiliza da estética da câmera na mão – como em praticamente todo o longa – e não usa de trilha sonora, apenas de passos e burburinho, fazendo com que o espectador sinta a tensão e a tontura que a personagem Primrose está sentindo. É a primeira vez dela no sorteio e é a primeira vez do espectador também.
Uma mulher com o cabelo colorido, maquiagens e roupas exageradas sobe ao palco, Effie (Elizabeth Banks), que não pertence a aquele lugar, ela é rica como os dois primeiros homens que estavam na entrevista. No momento em que Katniss se voluntaria para ir à arena da morte no lugar de sua irmã, não há música de tensão ou heróica, mesmo que a trilha sonora composta por James Newton Howard seja incrível; o diretor escolheu pelos gritos de Primrose e o silêncio dos moradores do distrito. Peeta Mellark (Josh Hutcherson) é sorteado como o tributo masculino e depois das despedidas começa o que será um reality show.
O reality show trazido ao cinema
Uma sequência de montagem rápida ilustra a primeira vez que Katniss e Peeta entram no trem e se deparam com toda a fartura dos mais ricos. Novamente a desigualdade entra em cena: minutos antes, Katniss ficou animada com um pão que Gale havia conseguido, enquanto essas pessoas ricas têm tanta comida a ponto de disperdiçarem sobras.
Apesar de Katniss ser a protagonista e Peeta um coadjuvante, pode-se considerá-los personagens-tipo: juntos, na jornada da heroína Katniss, eles representam a classe pobre. Ainda no trem, o espectador e os personagens são apresentados ao mentor Haymitch (Woody Harrelson) – a autora Suzanne Collins fez questão de seguir a jornada do herói, de Joseph Campbell, e é possível perceber cada um de seus 12 passos na trama. Haymitch é um personagem que já passou pelo que Katniss e Peeta estão passando, sobreviveu e agora tem que ajudar os novos “tributos”, porém ele sempre está bêbado – nota-se que não poder fazer nada a respeito sobre a barbaridade o deixou assim, já que mais a frente, quando ele vê uma esperança em Katniss e que ela provoca uma mudança no povo de Panem, seu alcoolismo é controlado.
O entretenimento pão e circo
O nome dessa nação futurística, Panem, vem da expressão panem et circenses, pão e circo, frase utilizada na Roma antiga, quando aconteciam jogos entre gladiadores e escravos. Eles lutavam até a morte para distrair o público que sofria com a fome e a miséria. Paralelamente, há uma grande metáfora da sociedade do espetáculo – conceito de Guy Debord -, a sociedade contemporânea: tudo é espetáculo, desde um programa de entrevistas a um reality show onde jovens lutam até a morte.
Como em qualquer espetáculo, deve-se ter carisma para conquistar o público, e isso é algo que Katniss não tem, mas Peeta sim. Ao chegar na Capital, Peeta acena para as milhares de pessoas esperando na estação de trem. A partir da entrada dos dois tributos na Capital, vê-se uma infinidade de pessoas vestidas e maquiadas de maneira extravagante, de uma maneira excêntrica; o espectador entende o que tudo isso significa e, de certa forma, acha bonito, e não poderia ser diferente, o departamento de arte do filme contou com mais de 80 profissionais especializados.
Contudo, logo após demonstrar todo o exagero que os ricos esbanjam, Cinna (Lenny Kravitz) é apresentado. Como ele não é exagerado, como os outros cidadãos, o espectador cria empatia por ele. Cinna e Effie são dois personagens interessantes e importantes de se dar destaque: Cinna é um homem da Capital que entende a sociedade desigual em que vive e que luta pela revolução e Effie é uma mulher da Capital que aprende que o mundo em que ela vive é uma bolha e que as atrocidades que acontecem são encobertas pelo espetáculo.
A revolução em Jogos Vorazes
Como dito anteriormente, Katniss e Peeta são personagens tipo da classe pobre e, no desfile, ao darem as mãos, o significado do ato é: “somos a classe mais pobre dessa sociedade e estamos aqui para lutar”. É como um confronto, armado em um só movimento. Katniss é a esperança dos mais pobres e “a esperança é a única coisa mais forte que o medo”, como diz o ditador, Presidente Snow (Donald Sutherland), que pode ser considerado um antagonista secundário, já que o antagonista principal é o sistema.
Finalmente, os jogos. Se ainda não havia mostrado seu potencial até esse momento do filme, Jennifer Lawrence o faz em menos de um minuto. É possível sentir a tensão da personagem antes de entrar no tubo que a levará para a arena, o medo, mesmo sendo uma personagem corajosa. Quando ela entra no tubo, o som é abafado e Gary Ross começa a brincar com a pista sonora – um dos principais elementos trabalhados nas cenas dentro da arena. A luz que cega Katniss e a desorientação – marcada pela câmera na mão, montagem rápida e um som de difícil identificação – deixa o espectador tão tenso quanto ela. Assim como na colheita, é a primeira vez de Katniss na arena e a primeira vez do espectador também. E então, a fuga, a arena com gladiadores e o big-brother.
Na última sequência da arena, a sequência das amoras, há uma breve referência à Romeu e Julieta, mas realmente breve, já que o prêmio a ser ganho não é o amor proibido e sim o início de uma revolução contra as mazelas impostas por essa sociedade desigual. Esses dois membros da classe social mais pobre estariam se suicidando em prol de um bem maior, em prol de uma missão, seriam mártires da revolução; porém, ao serem impedidos de comer as amoras, eles se tornam mais do que mártires, eles se tornam imagens e referências da revolução – fato que dará pano para a manga de mais dois livros e três adaptações cinematográficas.
“Jogos Vorazes” é um filme que praticamente não utiliza do tripé e também pouco se utilizou de efeitos especiais de pós-produção. Gary Ross resolveu adaptar o livro focando em outros pilares: a faixa sonora – que conecta os espectadores diretamente com o interior dos personagens; a câmera na mão; a montagem; o texto – ele não deixa de lado falas presentes no livro e inclui algumas que dão ao produto audiovisual outra dimensão; e, é claro, a interpretação dos atores, atores já consagrados no universo cinematográfico hollywoodiano, muitos deles indicados e vencedores de prêmios, provam que não foi uma escolha a esmo, eles cabem perfeitamente em cada personagem interpretado.
Novamente, o momento da vitória não tem trilha sonora, não é um momento heróico que merece ser engrandecido. Dezenas de jovens foram mortos para que aquele momento chegasse, não merece música, merece luto, silêncio. A revolução, que foi contida por 74 anos à base de mortes da juventude, foi iniciada exatamente por membros dela, e é por isso que o filme termina com uma imagem do Presidente Snow: os governos fazem de tudo para evitar uma rebelião e uma vez encorajada, ela deve ser contida.