Uma Reflexão em Cima das Representações da Paixão de Cristo
Todo ano assisto a, pelo menos, uma representação dos Evangelhos. Não apenas a lazer e estudo bíblico, como também para estudo cênico, textual, e artístico. Para os que não sabem, sou católica, e no Santuário que frequento todo ano representamos, teatralmente, a Paixão de Cristo. Estudando para criar essa apresentação, anualmente me cerco de referências, não apenas oficiais, como a própria Bíblia, como também de performances já criadas.
Essas diferentes execuções de uma mesma história poderiam se tornar repetitivas, trazer um esgotamento. Todos já sabem o final, e ai de quem falar que é spoiler: Jesus é crucificado. Mas até agora as possibilidades não findaram e existem diversas ramificações ainda para se contar, em cima desse mesmo contexto. Chego a duvidar que um dia as representações da Paixão de Cristo venham a acabar.
Neste texto, gostaria de falar de três dessas performances em particular, provavelmente as mais conhecidas: o filme de 2004, “A Paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson; a novela da TV Record, “Jesus” (2018/2019); e a ópera teatral, também levada ao cinema em 1973, “Jesus Cristo Superstar”.
A representação que cada época necessita
A arte é usada como expressão de opinião e fé há milênios. Desde que o homem existe, também existem resquícios de uma representação artística crente em algo maior. Os anos se passam, o Renascimento chega para a arte e para o cristianismo: Da Vinci e “A última ceia”; Michelangelo e o teto da Capela Sistina; Rafael e a “Madona do Pintassilgo”.
O Barroco não fica para trás, com “Cristo Crucificado”, de Velázquez; “O Retorno do Filho Pródigo”, de Rembrandt; e “Conversão no Caminho de Damasco”, de Caravaggio – que, aliás, é uma das minhas pinturas preferidas.
Com a tecnologia avançando, a representação da fé não poderia parar, e o surgimento do cinema e da televisão puderam expandir algo que antes só estava reservado ao teatro: pessoas reais interpretando aquelas histórias antes só conhecidas por meio de leituras ou imagens estáticas.
O passar do tempo também contribuiu para um desenvolvimento moral e crítico frente a sociedade que apenas grandes eventos mundiais e globalizados, como as guerras, poderiam trazer.
A divisão de opiniões sobre “Jesus Cristo Superstar”
Tal desenvolvimento crítico concretizou na primeira obra que irei analisar: “Jesus Cristo Superstar”. Apesar de estar focada no filme de 1973, dirigido por Norman Jewison, todas suas representações teatrais (de onde o filme foi baseado, aliás), podem ser observadas, inclusive a brasileira, que gerou tanto burburinho.
Milhares amam essa interpretação, milhares odeiam. E é basicamente o mesmo motivo que faz alguns gostarem tanto e outros repelirem: a atualização da história e a forma como é representada. Confesso estar no primeiro grupo, mas entendo aqueles que estão no segundo.
“Jesus Cristo Superstar” é um musical. Por esse motivo já pode dividir opiniões, afinal, não há uma frase que não seja cantada durante todo o filme, o que pode dificultar a experiência de pessoas não tão próximas desse gênero. Mas o fato agravador, advindo desse desenvolvimento crítico, é um dos maiores divisores de águas: a obra coloca Jesus como um homem normal e todos que estão em volta dele como idolatradores. Realmente “puxadores de saco”, se me permitem o palavreado.
Além disso, colocar todo o contexto dos Evangelhos frente a frente com a Guerra do Vietnã, alimenta a crítica em cima da sociedade que simplesmente esqueceu o que a morte de Jesus significou e está matando uns aos outros pelo quê? Poder? Dinheiro? Pela fé? É a revelação de uma hipocrisia tamanha que não haveria como não dividir opiniões. Se a carapuça serve… A performance que leva o nome do filme deixa essa crítica explícita.
Mas é justamente isso que faz esse filme se tornar um clássico e referência essencial para qualquer estudo em cima das representações dos Evangelhos.
O choque em “A Paixão de Cristo”
Essa evolução da arte é sempre seguida por uma evolução do público, e a ordem raramente é inversa. Foi o que aconteceu em 2004 com o filme de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”. Em que sentido? Na representação real da dor e sofrimento pelos quais Jesus teria passado.
Hoje em dia pode parecer algo comum assistir a filmes repletos de sangue, torturas e afins. Os nossos olhos já estão saturados de ver tais imagens, a ponto de elas parecem naturais. Porém, em 2004 isso era praticamente novidade, poucos cineastas haviam se aventurado nesse mundo sangrento e ultra realista, principalmente na área de filmes dramáticos e com certeza não na área de filmes religiosos.
Mel Gibson revelou esse lado horrendo na história de Jesus, o que chocou muitas pessoas que não tinham criado uma imagem tão vívida em suas mentes. A cena da flagelação dá arrepios só de lembrar. Apesar de o filme seguir uma forma clássica do cinema, há bastante uso de flashbacks. Como estão colocados nos momentos corretos, acaba não se tornando um recurso cansativo, mas essencial para a catarse.
Justamente por seguir esse estilo mais clássico de contação de histórias, “A Paixão de Cristo” se tornou uma grande referência para aqueles que buscam conhecer a história bíblica. Ele se tornou o que é hoje justamente por conta dessa ousadia física, que chocou grande parte dos espectadores.
Abrasileirando a Paixão de Cristo
Assim como cada momento pede pela sua encenação, cada lugar também o faz, e realmente faltava em meio às obras audiovisuais brasileiras uma boa representação dos Evangelhos.
Referências e símbolos imagéticos existem aos montes, é claro, já que o Brasil é um país majoritariamente cristão e os autores mais em alta na mídia também o são. Quem não se lembra da imagem de Zé do Burro carregando a cruz nas costas em “O Pagador de Promessas”, ou o julgamento final em “Auto da Compadecida”? Simbologias estão a nossa volta, seja na mídia ou no cotidiano. Porém, se há um formato que se solidificou na cultura brasileira foi a novela, e nada mais justo do que uma novela trazer a história dos Evangelhos para o Brasil.
A novela “Jesus”, produzida pela TV Record, também obteve muitas críticas, mas muitos elogios por outra parte. Apesar de toda a questão política envolvendo a emissora, não há como deixar de creditar a produção de “Jesus”, que foi realmente arrebatadora. Apesar de uma repercussão menor do que “Os Dez Mandamentos”, a novela que contava a vida pública de Jesus teve capítulos de ótima audiência e, durante a quarentena, registra a maior audiência das TVs argentinas.
As encenações e representações da Paixão de Cristo não vão parar por aqui, afinal, há tantas visões, tantas interpretações em cima desse fato. Quem sabe um filme do ponto de vista de Maria? De Pedro? Foi-se o tempo em que a arte, inclusive religiosa, era mera ilustração. É necessário que ela traga uma reflexão e questionamentos.
Esse debate merece ser aprofundado aqui nos comentários, não é? Conta o que você achou de uma dessas obras ou até mesmo de outras que não citei aqui.
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