#pracegover audiodescrição resumida: ilustração em fundo cinza. No lado direito, oito riscos de diferentes tamanhos e cores descem do topo da ilustração. Ao lado dos riscos o escrito em vinho: "crítica de o diabo de cada dia".
OPINIÃO

Os Dedos que Tudo Escrevem, Olho Que Tudo Vê

São Paulo, em suas cartas aos Coríntios, explica a ressurreição do corpo, uma vez terrestre: “o corpo é semeado na corrupção e ressuscita incorruptível; é semeado desprezível e ressuscita glorioso; é semeado na fraqueza e ressuscita cheio de força; é semeado um corpo psíquico e ressuscita um corpo espiritual”. A vida terrena tem base no pecado e a misericórdia divina é o que todos almejam. Deus é o olho que tudo vê, é o criador de trilhões de vidas e histórias e a analogia com o autor, revelada em “O Diabo de Cada Dia”, traz personagens cujas existências terrestres são repletas de pecado e cuja misericórdia é constantemente recebida com a morte, momento em que a ressurreição poderia ser alcançada.

O novo filme da Netflix, baseado no romance de Donald Ray Pollock, “O Mal Nosso de Cada Dia“, revela o lado obscuro da humanidade, mesmo em lugares onde a fé e a instituição cristã prevalece como autoridade. Mostrando uma fé deturpada e um cristianismo corrompido, o diretor Antonio Campos reaparece em uma obra que permeia o mesmo universo de seus longas anteriores: a religião, a fé e o pecado.

O autor como deus

“O Diabo de Cada Dia” traz um narrador onisciente e onipresente, não importa o tempo, o espaço e o momento pintado na tela. O convite feito ao autor, Pollock, para que interpretasse tal personagem, constrói uma analogia do autor como o deus de uma história. O criador tudo sabe, tudo vê e muda as realidades dos personagens da maneira que bem entende. É um papel celeste e, claramente, divino.

A direção de fotografia e a escolha dos planos reitera essa visão, colocando o diretor Antonio Campos também como autor, com planos próximos dos personagens, tão próximos que é como se ele conhecesse o íntimo de cada um, em seus mínimos detalhes — fazendo o espectador também ter parte desse conhecimento.

Uma voz que chega do além, não apenas para explicar ou complementar a história, mas também para fazer esse papel divino de mostrar para o espectador os pecados e as redenções que acontecem naquela cidade; o que puxa na lembrança a voz vinda dos céus dizendo “eis meu filho amado”, descrita no Evangelho de São Mateus.

A morte como redenção

O protagonista Arvin é rodeado pela morte desde a infância e também por uma visão deturpada do que poderia ser uma comunicação com Deus. Seu pai tenta ensiná-lo que rezar é a melhor forma de conseguir o perdão e também o atendimento de pedidos, mas no desespero, um ato pagão de sacrifício instaura em Arvin a repulsa pela religião e por tal Deus que o fez perder tanto. Com o passar dos anos, a instituição igreja não consegue lhe provar o contrário, e quando um novo pastor chega na cidade, Arvin recebe a confirmação de como tal instituição está repleta de situações desprezíveis.

A morte de diversos personagens, porém, é apresentada de forma redentora, como um modo de, quem sabe, receber a misericórdia por seus pecados — que são muitos. A cidade onde a história acontece é corrupta e violenta, assim como seus moradores, uma metonímia para a sociedade. A primeira morte, na guerra, já demonstra como tal fato será tratado durante toda a trama como salvação e libertação.

A cruz, simbólica para a religião cristã como o instrumento da crucificação de Jesus Cristo, também reitera a possibilidade de perdão dos pecados. Em diversas sociedades, a intersecção entre os eixos, na cruz, significa a junção entre os planos material e transcendental. Em “O Diabo de Cada Dia”, o símbolo é enquadrado diversas vezes, em situações diferentes e até mesmo extremas, mas sempre de maneira altiva, de baixo para cima, mostrando que o seu significado está muito acima do que qualquer um pode compreender ou alcançar.

Com um elenco fortíssimo, é necessário dar ênfase às atuações de Bill Skarsgård e Tom Holland. Os seus personagens exigiam, além de conexão entre si, a transmissão de uma fé e esperança disfarçada com outros nomes e atos. Mesmo nos momentos de ateísmo, notava-se a espera por dias melhores e a crença de que a péssima sociedade do planeta Terra não é de todo ruim. Willard e Arvin são personagens com psicológicos complexos advindos de grandes traumas, mas os únicos que tiveram seus pecados cometidos por sentimentos puros, pode-se dizer, e não por cobiça, luxúria ou orgulho.

“O Diabo de Cada Dia” é um filme que traz uma reflexão bastante forte, com o uso da ficção e que, não importa sua religião ou se você possui uma, vale a pena assistir para repensar a sociedade que vivemos e os conceitos de certo, errado, pecado e perdão. Atualmente, a corrupção, a fraqueza e o desprezo permeiam toda a sociedade, focada principalmente no psíquico. Como alcançar uma ressurreição forte e gloriosa?

 

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