Treinando o Olhar para Reconhecer o Extraordinário
O olhar é algo que pode ser treinado, assim como os ouvidos, a fala e a escrita. Para quem trabalha com criatividade, não basta que sigamos a vida olhando-a de maneira ordinária, sendo que dela transborda material para o extraordinário a todo segundo. Até mesmo para quem não trabalha diretamente com criação, um olhar treinado para observar os detalhes singulares pode tornar o dia a dia mais leve. Mas como que podemos fazer essa mudança?
Como o normal pode se tornar surpreendente?
Devo dizer que é difícil e não, você não via conseguir fazer isso 100% do tempo, até porquê existem coisas que fazemos de forma automática, e tudo bem isso acontecer. No entanto, quando estamos no automático, deixamos detalhes passarem despercebidos e o extra está nos detalhes.
Eu sou uma pessoa que gosta de ler e assistir a séries no transporte público, faz o percurso demorar um pouco menos. Mas tem dias que eu decido que não irei levar o livro ou o fone de ouvido e ficarei atenta à minha volta. E quando eu digo atenta, é realmente atenta.
Aposto que você já se pegou tentando ver o título do livro que a pessoa ao seu lado está lendo ou prestando atenção na ligação que alguém está fazendo. Lembra o ato bisbilhotar, mas não é, não vamos fazer nada de mal com as informações coletadas ali — até porque nem conhecemos aquelas pessoas —, na verdade, espero coletar experiências pra fazer delas boas obras. Pode ser que você não tire nada desse experimento em certo dia, mas no dia seguinte, ele pode te trazer ótimas ideias e despertar um outro olhar sobre o momento.
Não costumo fazer isso com pessoas que eu conheço, porque quando você convive com a pessoa, sabe a história dela, é muito mais difícil criar algo singular, extraordinário, do branco. Muito provavelmente a personagem ou cena que você pensar estará repleta de pré-conceitos (não no sentido pejorativo, mas no sentido de concepções prévias).
Exemplo e Prática
Nesse momento, quanto menos lógica usar, melhor.
Vou dar um exemplo: um dia eu estava no ônibus e um homem estava falando com a sua mãe ao telefone. O assunto parecia ser compras no mercado. — Veja que eu já criei uma ideia sobre o que poderia estar acontecendo ali.
De repente, ele começou a ficar muito irritado, falando que ela tinha que comer beterraba, e ele repetiu “beterraba, mãe! Compra beterraba! Tem que comer beterraba!” várias vezes seguidas. Eu achei a situação muito engraçada e única. Tão única que poderia virar uma pequena cena de comédia, usada como esquete no teatro ou aguardando o projeto na qual ela seria inserida.
Imagine: um homem acaba de ir no nutricionista, que receita para ele uma dieta rica em vitaminas que constam na beterraba. O homem fica tão bitolado com esse exemplo de dieta que começa a falar pra todos que a beterraba é a melhor comida que uma pessoa poderia ingerir, e tudo que ele cozinha contém beterraba. A vida dele vira uma grande busca por beterraba. E por aí vai.
Usei o meu olhar (nesse caso, meu ouvido) para capturar uma cena banal e transformá-la em algo exótico, excêntrico, típico de uma narrativa ficcional.
O segredo é assumir o controle do significado que você dá às coisas e ao que acontece a sua volta.
Veja o que é óbvio de maneira menos óbvia. Brinque e esvazie sua mente do senso comum. Lembre que tudo à sua volta pode ter vida, vontades e incentivos (inclusive os objetos inanimados, assim que nasceu Toy Story).
Não é uma tarefa fácil e é algo que deve estar se exercitar sempre. E não deixe de armazenar todas as ideias que surgirem.
Tente praticar esse exercício hoje ou na próxima vez que você sair de casa – para coisas essenciais, ainda estamos em quarentena, cuide de você e dos outros – e conte como foi a experiência, se você recolheu um detalhe interessante que te incentivou a criar, se você viu algo bonito que só teria percebido se estivesse realmente atento à sua volta. Às vezes a beleza da sua inspiração se torna inspiração para outras pessoas também.